Maria Tereza Jorge Pádua, a mulher que criou 8 milhões de hectares em áreas protegidas no Brasil
Maria Tereza Jorge Pádua, a mulher que criou 8 milhões de hectares em áreas protegidas no Brasil


Lembranças da infância, da vida acadêmica e do trabalho de conservação da biodiversidade
Bem à vontade, a conservacionista fala sobre a sua infância na cidade de São José do Rio Pardo, município a 219 km de São Paulo. Quem vê hoje a notória ambientalista, responsável pela criação de uma imensa lista de unidades de conservação em todo o país, não imagina que foi a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, o divisor de águas para sua carreira. “Eu comecei a gostar da natureza lendo Os Sertões. Quando eu o li pela primeira vez, era uma menina, tinha 12 para 13 anos. É claro que não entendi quase nada. Sou da terra onde Euclides da Cunha escreveu essa obra prima. Nasci em São José do Rio Pardo, então, sou euclidiana em tudo quanto é canto. Aquilo [o livro Os Sertões] foi extremamente importante. Então, eu recomendo para todo mundo”.
“Os Sertões foi uma porta que se abriu no meu caminho e daí eu pensei em trabalhar com Cerrado, com sertões, com flora e com fauna, isso depois de adulta e de formada. Eu lia demais. Quando mocinha, lia José de Alencar, Machado de Assis, eu adorava. Então, Os Sertões foi o livro que mais me impressionou na vida. Eu gosto de ler até hoje. Sempre gostei demais de tudo que tinha filosofia ou que tivesse qualquer coisa da área ambiental como descrição de ecossistemas, de flora, de fauna. Eu, por exemplo, adoro os livros do meu marido”, diz a ecologista, aos risos.
Ainda sobre a sua infância, Maria Tereza lembra das vezes em que passava os dias na chácara dos avós maternos. A ambientalista lembra que o lugar ficava de frente ao rio Verde. “Eu aprendi desde cedo a ter muito amor pelas matas ripárias, as ciliares, porque nós nadávamos e pescávamos nesse rio. Eu logo comecei a gostar da mata e dos animais. Daí para trabalhar com isso foi um pulo. Sou engenheira agrônoma. Na época, era a profissão mais próxima da área ambiental. E meu primeiro emprego importante foi com conservação. Isso já faz 50 anos”.
A mãe, Gessy Jorge, era neta de italianos e o pai, Nicolau Jorge, de sírios-libaneses. Vem daí o seu gosto por culinária, sua paixão por cozinhar. “Eu cozinho muito bem. Faço comida árabe com facilidade, porque sou neta de árabes por parte de pai, e comida italiana, porque sou neta de italianos por parte de mãe. Também me dedico à culinária peruana, porque sou casada com o Marc. Eu sempre adorei doce em casa”.
Quando os seus pais se casaram, a mãe de Maria Tereza era muito nova, ia fazer 19 anos. Dos quatro filhos que tiveram, dois morreram na infância. Sobreviveram apenas Maria Tereza e o seu irmão mais novo, José Fausto Jorge, que vive na cidade de Sorocaba. Os pais trabalhavam numa rede hospitalar do Estado de São Paulo com referência em tuberculose. A mãe trabalhava no serviço administrativo de enfermagem, 0 pai era diretor administrador.
Em 1962, Maria Tereza Jorge Pádua entrou para a Universidade Federal de Lavras (UFLA), em Minas Gerais, para cursar a faculdade de Engenharia Agronômica. Sua vida como universitária, longe dos pais, não foi fácil.
A ambientalista enfrentou dificuldades financeiras e, como o curso de engenharia agronômica era em período integral, não conseguia trabalhar. Seus pais nunca deixaram de apoiá-la, mas ganhavam pouco e não podiam sustentar a filha universitária; moravam numa casa no próprio hospital para tuberculosos.
Durante os seus quatro anos como universitária, Maria Tereza se virou como pode e reconhece que, apesar das adversidades, teve ajuda de muitas pessoas. “Na época, eu morava na garagem de uma senhora em Lavras. Essa senhora e o irmão moravam juntos e embaixo da casa tinha uma garagem, um quartinho com um banheiro. Eu trabalhei no laboratório de solos da própria universidade. Recebia uma bolsa, que era pouco, metade de um salário-mínimo na época. Eu vivia com muitas dificuldades. Em frente à casa onde eu morava, tinha um buraco, um declive, onde eu plantava a minha horta e comia o que tinha plantado. Depois, comecei a namorar um rapaz, o pai dos meus filhos [o engenheiro agrônomo Luís Fernando Pádua], que era de uma família bem financeiramente em Lavras, e eles também me ajudaram muito”, lembra a conservacionista.
“Olha, eu fiz muitas refeições no bandejão da faculdade – declara a ambientalista aos risos – e também tinha a dona Conceição, mãe de uma grande amiga, a Sônia Maria Pereira [Wiedmann, advogada da área ambiental} que hoje mora em Brasília. A dona Conceição me esperava no portão da casa dela porque ela sabia que eu não tinha como comprar comida. Então, na hora em que subia, depois de trabalhar no laboratório de solos, ela ficava na porta, fazia eu entrar. Ela punha nas suas mesas gigantescas: café, doce, pão de queijo e dava para eu me alimentar”.
“Eu, às vezes, ficava com tanta vergonha que ia pela rua de trás, fugia de vez em quando, porque era meio vergonhoso ir todos os dias. Mas nós acabávamos nos encontrando porque Lavras era uma cidade muito pequena, todo mundo se conhecia. E teve também o pai de uma amiga, na época, o tio Romeu Alvarenga, que foi um segundo pai para mim”, lembra Maria.
Para se distrair, Maria Tereza passava no Bar do Ponto, onde parava para beber uma pinguinha, como ela mesma diz, aos risos. Mas, segundo a conservacionista, o dono do bar sabia que ela tinha dificuldades em comprar comida e sempre dava alguma coisa para ela comer. “Ele não me cobrava. Se eu comesse alguma coisa, ele ‘esquecia’ de marcar para pagar depois”.
“Eu só tenho a agradecer de ter tido a vida que tive, que dependeu de muitas pessoas boas, de bons ensinamentos, de excelentes professores. Eu não tinha carro para ir à universidade. Tinha de ser a pé. Eu andava meia hora com passo rápido, mas eu sempre penso: ‘Foi a melhor ginástica que eu fiz na vida’”, lembra.
Atrevida. Esse é o adjetivo que Maria Tereza usa para se descrever. Sem dúvida essa qualidade foi fundamental para que a conservacionista galgasse espaços que antes pertenciam somente aos homens. Estudiosa, boa aluna, conhecia muito de biodiversidade. No caminho, entretanto, teve que lidar com o machismo. Era uma das quatros mulheres em toda a universidade e a única mulher da turma de aulas práticas. A engenheira agronômica lembra que chegou a pilotar um monomotor e ouviu o gracejo : ‘Vai entrar num avião, vai manejar um trator?’. Maria, que chegou depois a dar aulas em curso de aviação, entende que isso era uma forma de vê-la como uma mocinha indefesa que precisava de proteção.
A ecologista nunca se deixou abater e enfrentou os preconceitos de sua época. “No dia que coloquei uma calça, meu Deus do céu! O meu pai me viu e foi aquele choque violento, porque moça de boa família não andava de calça comprida”.
“Éramos quatro mulheres em toda a Universidade Federal de Lavras. Uma é minha comadre, madrinha de um filho meu. Então, realmente é uma situação, que a gente se sentia… não digo perseguida, mas a gente se sentia vigiada. Mas tem um bom lado, muita gente nos vigiava com amor também. Tínhamos os invejosos, como sempre tem, como em qualquer lugar da sociedade. Mas eu fui mais privilegiada do que perseguida”, afirma Maria Tereza.
“Eu acho que realmente foi difícil me ver enfrentar certas situações, mas enfrentá-las me deu um gabarito excelente. Eu passei a ter muita compreensão, muito amor de pessoas e famílias”, continua a engenheira agronômica.
E foi esse excelente gabarito que fez de Maria Tereza uma das maiores conservacionistas do mundo e pavimentadora de muitos caminhos que inspiram ambientalistas até hoje. Ao ser perguntada sobre o seu pioneirismo, Maria Tereza Jorge Pádua responde lisonjeada: “É muito chique isso. Eu acho que fui, assim, uma das primeiras, da minha época. E quem trabalhou comigo, nós tivemos, realmente, que abrir um pouco de caminho, porque naquela época ninguém se importava muito com meio ambiente, com preservação da biodiversidade. Era tudo muito diferente. Se preocupavam só com o turismo, como Cataratas do Iguaçu. Então, a preservação da biodiversidade era uma coisa que quase ninguém falava”.
Maria Tereza se graduou em 1966. Depois de formada casou-se com Luís Fernando Pádua com quem teve três filhos: Alexandre, Cláudio Túlio e Fausto Luiz. Em 1968, mudou-se para o Rio de Janeiro e conseguiu um cargo no setor de parques nacionais do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que havia sido criado um ano antes. O órgão precedeu o Ibama, que ela viria a presidir em 1992.
Foi no IBDF, local onde chegou a ser secretária-geral, que Maria Tereza começou seu caminho até se tornar a “mãe das unidades de conservação”.
Quando chegou ao IBDF, o Brasil tinha somente 15 unidades de conservação, e apenas uma na Amazônia, a Floresta Nacional de Caxiuanã. De proteção integral não havia nenhuma. Quando Maria Tereza pediu demissão em 1982, já contávamos com 63 unidades de conservação federais no país, sendo 14 de uso sustentável e 49 de proteção integral. O motivo da ambientalista entregar o cargo foi a decisão do então presidente Figueiredo de autorizar a construção de uma estrada dentro do Parque Nacional do Araguaia, no Tocantins. O projeto foi engavetado logo depois, mediante ampla campanha contrária.
Numa época em que pouco se falava em meio ambiente, criar unidades de conservação exigiu esforços, conscientização e vencer desafios. Maria Tereza tinha uma equipe pequena, de poucos recursos, então teve que pedir ajuda. A ecologista fala sobre esse começo e a elaboração de um plano de Sistemas de Unidades de Conservação no Brasil, principalmente na Amazônia. Ela destaca o papel de Kenton Miller, engenheiro florestal americano que participou do movimento conservacionista e na propagação de unidades de conservação na América Latina.
“Kenton Miller era especialista em parques nacionais nos Estados Unidos e veio fazer um trabalho no Brasil, no começo da década de 1970, já que despertava interesse na Amazônia, como vários ambientalistas no mundo”, explica a engenheira agronômica. “Ele se baseava no sistema de unidades de conservação dos Estados Unidos, mas havia trabalhado também em outros países tanto da África quanto da América Latina, como o Chile”, continua Maria Tereza.
“Eu não tenho nenhuma vergonha de falar que eu me baseei muito em Kenton Miller. Nós pagávamos consultoria para ele, mas Miller também trabalhava sem receber para fazer o sistema de parques nacionais no Brasil”.
Até 1974, só havia uma unidade de conservação criada na Amazônia, a Flona [Floresta Nacional] no Pará. As perguntas martelavam a cabeça: como começar, onde e como com tão poucos recursos. “Vários cientistas haviam indicado centros de endemismo na Amazônia brasileira. Onde nós vamos procurar as unidades de conservação? Nos centros de endemismo que a Amazônia teve no Pleistoceno [época compreendida entre 2,5 milhões e 11,7 mil anos atrás, sendo pertencente ao Período Quaternário da Era Cenozóica], então esses centros de espécies endêmicas deram o que é a Amazônia de hoje”, explica a ambientalista.

E Maria Tereza continua: “Na época eram fotografias aéreas feitas com sobrevoos, com mapas do Inca, etc. Não eram satélites (risos). Vários institutos do Brasil tinham estudos na Amazônia. Usamos muito o Projeto Rondon [plano desenvolvimentista implementado no Governo Médici, em 1968, que levou universitários a terem contato com comunidades do Norte e Nordeste do país para implantar ações assistenciais nesses lugares]”.
Num período difícil como o regime militar, Maria Tereza afirma que se sente sortuda de conseguir implantar unidades de conservação (UC’s) nessa época. Claramente contrária à ditadura militar, mesmo assim, reconhece a participação e a ajuda de figuras como o almirante Ibsen de Gusmão Câmara e do também almirante José Luís Belart, e os descreve como ‘figuras impagáveis e inesquecíveis’ no processo de implementação das UC’s no país. Os dois almirantes foram as pontes que Maria Tereza tinha com as Forças Armadas. Tanto Ibsen quanto Belart eram apegados à ideia de se fazer unidades de conservação no país.
De tantas unidades de conservação criadas, tem uma que não sai da mente da ecologista: a criação da Reserva Biológica (Rebio) do Rio Trombetas, no Pará, no dia 21 de setembro de 1979. Não que a Rebio seja mais importante do que tantas outras que Maria Tereza ajudou a criar. O motivo da lembrança e da emoção é que essa UC foi proposta pelo primeiro marido da ambientalista, Luís Fernando Pádua, que estudava tartarugas de água doce em Trombetas.
“No dia em que foi criado o Rio Trombetas, eu chorava. Eu fui fazer maquiagem, acho que entre seis e meia às sete da manhã. A cerimônia foi cedo. Na hora que o Figueiredo [presidente João Figueiredo] assinou o Trombetas, eu comecei a chorar e o Ibsen sentado ao meu lado falou assim: ‘Cê tá chorando lágrimas negras’. Porque eu estava pintada, tinha feito maquiagem e fiquei toda borrada. Eu com o presidente da República e tudo, ele me deu o lenço. Eu nunca devolvi o lenço. Ficou de história (risos)”, lembra Maria Tereza.
“Mas o Rio Trombetas me emocionou demais. Eu acho que o envolvimento do Luís, de ter feito todo o trabalho lá, envolvendo os meus filhos e tal. Com a primeira unidade marinha, eu também fiquei louca, que foi Fernando de Noronha. Eu amo cada uma. Foram muitos anos, 50 anos na área. Eu tive a chance de ver muita coisa bonita. Muita coisa boa acontecer”, acrescenta a conservacionista.
Em 2016, foi contemplada com a medalha John C. Phillips, honraria existente desde 1963, concedida a personalidades que dedicaram a vida à causa da conservação. Pela primeira vez, o prêmio foi concedido ao Brasil e Maria Tereza se tornou a segunda mulher, depois de Indira Gandhi, a ser agraciada com uma das maiores honrarias na área da conservação mundial.
Embora concorde que a conscientização sobre a importância da preservação e conservação da natureza tenha melhorado ao longo das décadas, Maria Tereza afirma que, na prática, a proteção da biodiversidade deixa muito a desejar no país. “Eu sinto mais do que tudo, quando as pessoas falam de meio ambiente com um pouco de escárnio. Quando falam de fauna e flora, o escárnio é maior até. Existem pessoas que brincam: ‘‘Tá preservando bichinho, ‘plantinha’. Mas é extremamente importante nós preservarmos a biodiversidade para a nossa própria vida”.






